sábado, 23 de setembro de 2006

Do nosso conhecido pai do satélite português, Carvalho Rodrigues:

“O Futuro Imperfeito,
com Um Riso

Passei toda a minha vida a olhar para o futuro. De tanto olhar, desejei o eterno. Morrer no infinito. Mas o infinito não se conjuga. Só tem presente. Nos tempos dos verbos, do futuro, só há o imperfeito. O Futuro é imperfeito. Agora do passado até há o mais-que-perfeito. Há o perfeito e por vergonha também o imperfeito. Todos queremos um passado mais que perfeito. Poucos querem o futuro porque já sabem que é imperfeito. Porque o passado não foi perfeito e do futuro só há o imperfeito, diz-se: vivo o dia a dia.
E, no entanto, eu não acredito em conhecimento da verdade que não tenha sido alcançado sem uma real possibilidade de erro. É bom ter o privilégio de ter ideias que não só são impopulares como até estão erradas.
O Futuro é do imperfeito.
Ninguém consegue desfrutar a vida neste mundo se não aceitar, com alguma medida, a imperfeição. A vida, apesar da imperfeição, é um continuado milagre.
Eu conheço quem dance. Quem dança acredita que aprende praticando. Praticar quer dizer executar passos, uma e outra vez, transpondo obstáculos, através de uma visão, de uma fé e de um desejo. A prática é um meio de convidar a dança até à perfeição. Aprende-se a chegar à perfeição, no futuro, praticando a dança até à exaustão. Aprende-se a viver praticando a vida. Sem nunca parar de aprender. Sem nunca ter o sentimento de ter chegado. Com o gosto da descoberta da beleza.
Está em tudo. Está no quente e sensual da mulher. A própria vida. Está no ritmado fluir da música. Está no momento fugaz do nascer do Sol. Está na terrível majestade da tempestade. Está numa equação. Está num quadro, num poema. Está no instinto que reside em cada coração. Está em acreditar, sem medo, nas pessoas. Está no olhar aberto de uma criança. Está no talento de cada um. Cada um de nós é um meio da sua expressão.
É preciso ter fé para fazer ciência, cantar e dançar. Acreditar que se podem fazer estas coisas não chega. O estudo e o trabalho fá-las-ão. A fé é, no entanto, a ferramenta mais poderosa do mundo. Eu acredito em acreditar.
As ideias não produzem efeito a não ser quando se acredita nelas tanto que levam à acção. Se assim não for, pensar é a tarefa para a preguiça. Até saber no que se acredita não é possível estabelecer objectivos, não é possível medir o progresso. A fé na vida é uma espécie de coragem que se lhe põe. E, da vida, o que conta é a coragem que se lhe põe. Eu acredito em ser generoso para a vida. Acredito nas grandes descobertas. Acredito nas pessoas.
A ciência pode libertar-nos do peso da natureza física da dor. Só o profundo respeito pela dignidade humana pode libertar-nos da miséria humana. Em ciência não patenteamos verdades, damo-las a todos.
E cada vez que as opiniões são respeitadas, as ideias valorizadas, a energia e o espírito põem-se de acordo para trabalhar o futuro. Será imperfeito. É uma tragédia que a imperfeição e o desespero tenham tantos porta-vozes e a esperança tão poucos.
Eu tenho que acreditar que sou feliz. O que o faz singular é que quando se está feliz não se diz a ninguém. A infelicidade comunica, fala, expressa-se muito mais.
Somos assim. Escondemos oportunidades. Propagandeamos os desaires. O mundo está triste. Queremos comprar tudo…
E eu lembrei-me de Clarence Davies: “Pode comprar-se o tempo de uma pessoa. Pode comprar-se a sua presença num lugar. Pode comprar-se um determinado número dos seus movimentos musculares durante algumas horas do dia. Mas não se pode comprar lealdade. Não se pode comprar a devoção e o afecto dos corações, dos espíritos e das almas. Essas têm que se ganhar”.
Eu, um destes dias, ouvi e vi o Bernardo a rir em frente à alvorada do futuro daquele dia. Era um riso de vida em frente do futuro imperfeito. Era um riso para ganhar almas e corações. Era um riso de amor e fé. E, entre muitas outras coisas, passei a acreditar no riso de um futuro inocentemente imperfeito.”

“Convoquem a alma”
Fernando Carvalho Rodrigues

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