sexta-feira, 13 de junho de 2008

"Há poesia em tudo - na terra e no mar, nos lagos e margens dos rios. Também há na cidade - não o neguem - é evidente para mim aqui onde me sento: há poesia nesta mesa, neste papel, neste tinteiro; há poesia na trepidação dos carros na rua, em cada movimento ínfimo, trivial, ridículo de um operário que, do outro lado da rua, pinta a tabuleta do talho.
O meu sentido interno predomina de tal modo sobre os meus cinco sentidos que vejo as coisas desta vida - estou convencido disso - de modo diferente dos outros homens. Existe - existia - para mim um significado riquíssimo em algo tão ridículo como a chave de uma porta, um prego na parede, os bigodes de um gato. Há, para mim, toda a plenitude de sugestão espiritual numa galinha com os seus pintos a atravessarem a estrada com ar pimpão. Há para mim um signifado mais profundo que os medos humanos no aroma do sândalo, nas latas velhas deitadas num monturo, numa caixa de fósforos caída na valeta, em dois papéis sujos que, num dia ventoso, rodopiam e se perseguem pela rua abaixo."

Fernando Pessoa
in "Prosa Íntima de Autoconhecimento

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