quinta-feira, 23 de novembro de 2006

"O fogo


Não ardesse no Sol e a vida seria muito problemática na Terra. No Sol arde hidrogénio. Sem oxigénio. Mas com a pressão no interior do Sol, átomos de hidrogénio são esmagados uns contra os outros. De cada vez que se unem e fazem hélio há um bocado dos dois átomos de hidrogénio que é transformado em energia. É essa energia que, à distância de oito minutos de luz, torna a vida possível.
O Sol arde. Arde e produz hélio. Noutras estrelas, hélio é posto a arder e faz o próximo elemento da tabela de Mendeleyev. O fogo das estrelas produz então todos os elementos com que se faz a química do Universo. É no fogo que se molda a base atómica do mundo. É do fogo que nasce a radiação que permite a existência de vida. Claro que vida só à distância. Porque perto, o fogo, fonte de vida, não tolera a vida. No interior do Sol com a pressão de milhões de atmosferas e uma temperatura de um milhão de graus dá-se o paradoxo do fogo.
Nele nada vive. Sem ele, lá longe não haveria vida. No fogo há uma grande concentração de átomos, ao mesmo tempo que todos os átomos são sujeitos a uma enorme agitação.
No fogo não há a calma que a vida requer. No fogo tudo se passa tão depressa e com tanta intensidade que dizemos estar a uma temperatura elevada. Até a cor do fogo depende da temperatura. Se a temperatura no fogo for de cinco mil e quinhentos graus a cor é a da periferia do Sol. É a cor da luz da praia. Os nossos olhos vêem-na amarela. Aí pelos mil e quinhentos graus vem a cor avermelhada na labareda da chama. Nós, a trinta e seis graus e meio, não somos visíveis sem estar iluminados, mas estamos em permanência a radiar, em média, cem watts no infravermelho longínquo. Nós somos autênticos faróis para quem visse de oito a doze microns. Ardemos a baixa temperatura. Consumimo-nos, se não houver acelerações provocadas por doenças, em cento e vinte anos terrestres.
Ardemos a fogo lento: não levamos a vida a seja o que for. Reproduzimo-nos e multiplicamo-nos porque lá longe uma estrela consome-se a fogo rápido e envia-nos a luz da vida. No calor da vida somos fogo fátuo. Sabemos fazer fogo, mas ainda não o da vida. A nossa evolução pode até ser medida pela temperatura a que conseguimos fazer fogo. Há uns milhares de anos conseguimos fazer fogo a uma temperatura de algumas centenas de graus e cozemos o barro. Aconteceu a idade da cerâmica. Cerca de um milhar de graus e foi a idade do cobre. Mais alguma temperatura na fornalha e foi a do bronze. Mil e quinhentos graus e apareceu a metalurgia do ferro. Hoje somos capazes de manter fornos a dois mil e quinhentos graus. Fundimos a areia, fazemos a metalurgia da sílica. Vivemos na idade do silício. Do silício das comunicações, da electrónica, etc. por enquanto no calor da vida em todos os verões ateamos fogo a outra vida. Plantamos fogo nos lenhos das árvores. A labareda que lhes acaricia o exterior destrói a vida que se agarrou aos lenhos no começo da Primavera. Sem nos darmos conta, este fogo de mil e poucos graus que devasta as nossas florestas é uma traição ao Sol que nos dá a luz da vida. É que nos lenhos que fazem a estrutura da arquitectura das árvores penduram-se as antenas que a vida constrói para comunicar com o Sol. Vejam a geometria da arrumação das nervuras numa folha, reparem nas agulhas dos pinheiros. Apercebam-se da semelhança com as nossas antenas de rádio, de televisão, dos telemóveis, enfim do espectro electromagnético de que a luz partilha a natureza. As folhas das plantas são as antenas da vida que captam a mensagem que vem do Sol: crescei e multiplicai-vos. As folhas são as antenas que captam a energia que torna possível toda a vida no Planeta.
De cada vez que arde uma floresta, por cada vez que a chama do fogo enegrece, contorce, encarquilha e destrói uma folha, o fluxo da vida que partiu dos átomos de hidrogénio que se fundem no interior do Sol é interrompido. Por cada vez que uma folha deixa de olhar para o Sol quebra-se a aliança da vida entre a sua fonte e a sua existência. Por cada vez que tal acontece não arde e morre uma floresta. Perdemos um módulo de instruções para viver. Acabamos com o receptor da vida.
É que nós sabemos fazer antenas para quase tudo, mas só as árvores sabem fazer as antenas para a vida.”

Fernando Carvalho Rodrigues
“Convoquem a alma”

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