segunda-feira, 13 de junho de 2011

.
.
..
.
.
.
.


.
"Siddartha reflectia, caminhando lentamente.Compreendeu que já não era um jovem, mas um homem. Compreendeu que algo o tinha abandonado, da mesma maneira que a cobra abandona a sua pele velha, que já não estava nele algo que o tinha acompanhado toda a sua juventude e que lhe tinha pertencido: o desejo de ter mestres e de escutar doutrinas. O último mestre que tinha surgido no seu caminho, também a ele, o maior e mais sábio dos mestres, o mais santo, o Buda, tinha-o deixado, fora obrigado a separar-se dele, não pudera aceitar os seus ensinamentos.
Avançou reflectindo, cada vez mais devagar e perguntou a si mesmo: « Mas que era isso que querias aprender com doutrinas e com mestres e que eles, que tanto te ensinaram, não te podiam ensinar?» E compreendeu: «Era o Eu, cujo sentido e natureza eu queria conhecer. Era o Eu, de que eu queria libertar-me, que eu queria vencer. Mas não fui capaz de o vencer, apenas de o enganar, de fugir dele, esconder-me dele.. Na verdade, nada no mundo ocupou tanto os meus pensamentos como este Eu, este enigma, o facto de eu estar vivo, de existir separado e isolado dos outros, de ser Siddartha! E sobre nada no mundo sei tão pouco como sobre mim próprio, sobre Siddartha!»
O homem pensativo que avançava devagar, parou, presa destas ideias, e imediatamente uma outra ideia surgiu delas, uma ideia nova, que o fez exclamar: « O facto de nada saber acerca de mim, de Siddartha continuar a ser tão estranho e desconhecido de mim mesmo, tem uma causa, uma única: eu tinha medo de mim, estava a fugir de mim! Procurava Atman, procurava Braman, estava disposto a fragmentar o meu Eu para descobrir nas suas profundezas desconhecidas o cerne de todas as coisas, Atman, a vida, o divino, o último. Mas, desta maneira perdi-me de mim mesmo.»
Siddartha abriu os olhos e olhou em redor, um sorriso iluminou o seu rosto e um profundo sentimento de despertar de um longo sonho percorreu todo o seu corpo. E recomeçou imediatamente a andar, a andar com ligeireza, como um homem que sabe o que tem a fazer.
«Ah - pensou ele, respirando fundo -, não quero que Siddartha me volte a escapar! Não quero voltar a iniciar os meus pensamentos e a minha vida com Atman e com o sofrimento do mundo. Não quero voltar a matar-me e a fragmentar-me, para encontrar um segredo escondido entre destroços. Não quero aprender mais Yoga-Veda, ou Atharva-Veda, ou os ascetas, ou qualquer outra doutrina. Quero aprender comigo mesmo, quero seu o meu aluno, quero conhecer-me, conhecer esse segredo chamado Siddartha».
Olhou em redor, como se visse o mundo pela primeira vez. O mundo era belo, o mundo era colorido, o mundo era estranho e misterioso! Isto era azul, isto era amarelo, isto era verde, corria o céu e o rio, a floresta e a montanha erguiam-se, tudo belo, tudo enigmático e mágico, e no seu meio ele, Siddartha, o Despertado, a caminho de si mesmo. Tudo isto, todo este amarelo e azul, rio e floresta, entrava pela primeira vez nos olhos de Siddartha, já não era magia de Mara, já não era o véu de Maja, já não era a multiplicidade absurda e acidental do mundo das aparências, desprezível aos olhos dos profundos pensadores brâmanes, que rejeitam a multiplicidade e procuram a unidade. O azul era azul, o rio era o rio e quando o uno e divino em Siddartha viviam ocultos no azul e no rio, essa era justamente a forma e o espírito divino de ser aqui amarelo, aqui azul, além céu, além floresta e aqui Siddartha. O espírito e o ser não estavam algures pro detrás das coisas, estavam nelas, em todas elas.
«Como fui cego e tolo!» - pensou o andarilho apressado. «Quando alguém quer determinar o sentido de algo que lê, não despreza os sinais ou letras chamando-lhes engano, acaso e casca inútil, mas lê, estuda e ama-o, letra por letra. Mas eu, que queria ler o Livro do Mundo e o Livro do meu próprio ser, desprezei as letras e os sinais devido a um sentido preconcebido, chamei engano ao mundo das aparências, chamei aparência casual e inútil aos meus olhos e à minha língua. Não, isso já é passado, eu despertei, na verdade despertei e nasci hoje pela primeira vez».
Enquanto pensava estas coisas, Siddartha estancou novamente, subitamente, como se uma cobra se tivesse atravessado no seu caminho.
Subitamente também também isto se tornou claro para ele: ele, que na realidade era como um homem acabado de despertar ou de nascer, devia recomeçar a sua vida. Ao deixar, nessa mesma manhã, o bosque de Jetavana, o bosque daquele ser sublime, já despertado, já a caminho de si mesmo, era o seu objectivo natural regressar ao seu lar para junto do seu pai, depois de anos de ascetismo. Mas só agora, neste momento em que estancou como se uma cobra se tivesse atravessado no seu caminho, havia despertado para esta ideia: «Já não sou o mesmo que era, já não sou asceta, já não sou sacerdote, já não sou brâmane. O que vou eu fazer a casa do meu pai? Estudar? Fazer sacrifícios? Meditar? Tudo isso já é passado, tudo isso já não está no meu caminho».
Siddartha permaneceu de pé; durante um instante, durante um suspiro, o seu coração gelou, sentiu-o gelar no seu peito como um pequeno animal, um pássaro ou uma lebre, ao ver quão sozinho estava. Durante anos não tivera lar e não o sentira. Só agora o sentia. Sempre, mesmo durante a meditação mais distante, fora filho de seu pai, fora brâmane, de alta condição, um erudito. Agora era apenas Siddartha, o despertado, e nada mais. Respirou fundo e pro um instante sentiu frio e arrepiou-se. Ninguém estava tão sozinho como ele. Não era um nobre que pertencia à nobreza ou um artesão que pertencia a um grupo de artesãos e entre eles encontrava abrigo, partilhava a sua vida, falava a sua língua. Não era brâmane, que se contava entre os brâmanes e com eles vivia, não era um asceta que encontrava abrigo na condição dos samanas, nem o mais isolado dos eremitas era único e solitário, também ele pertencia a uma condição, que era a pátria. Govinda tornara-se monge e milhares de outros monges eram seus irmãos, vestiam-se como ele, tinham as mesmas crenças, falavam a sua língua. Mas ele, Siddartha, onde pertencia? Que vida poderia partilhar? Que língua poderia falar?
A partir desse instante, em que o mundo em seu redor se desvaneceu, em que ele se erguia solitário como uma estrela no céu, a partir desse momento um frieza e um desalento cobriu Siddartha, deixou-o mais Eu do que antes, mais concentrado. Sentiu: este fora o último espasmo do seu despertar, a última convulsão do nascimento. E imediatamente retomou o seu caminho, começou a caminhar rapidamente e com impaciência, já não em direcção a casa, já não para junto de seu pai, já não de regresso."

in "Siddartha" de Hermann Hesse
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.

Sem comentários: