sexta-feira, 15 de janeiro de 2010


" - Antes ao Sol que mal acompanhado!

Certa vez, quando regressávamos, ele me chamou e me segredou ao ouvido:

- Ntoweni engravidou!
- Ntoweni?

O velho apontou o pé direito, todo inchado.

- Essa é Ntoweni, minha falecida...

Para enxotar a solidão, o avô dera nome aos pés. Cada um baptizado por engenho de seus delírios, em jogo de marionetas. Mordido pela curiosidade, aticei-o:

- Essa é a avó. E a outra, como se chama?

Um risco malandro lhe arredondava o sorriso. Não podia confessar. Morreria com aquele nome só para ele.

- Mentira - desdizia em seguida. - Minha saudade existe toda só para Ntoweni. Venha cá meu neto: você nunca chegou de conhecer essa sua avó legítima?
- Nunca, avô. Desencontrámo-nos. E como era ela?
- Ntoweni era tão bonita que nem precisava ser jovem...

Todos me falavam da sua beleza. Mas ela não gostava de ser bela. A avó sempre respondia: se eu sou bela então maldita seja a beleza! Era assim que ela falava. A beleza, dizia, era uma gaiola que o avô inventara para ela ser pássaro. Um desses pássaros que canta mesmo em cativeiro. E o engano dessa aves é acreditar que o céu fica do lado de dentro da gaiola."

in "A Chuva Pasmada" de Mia Couto

Sem comentários: